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Sobre a dialética da cordialidade

  • Foto do escritor: Ana Celeste Alves Casulo
    Ana Celeste Alves Casulo
  • há 4 dias
  • 3 min de leitura
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Diz-se que o brasileiro é cordial. Esta cordialidade, porém, que se oferece como antídoto à frieza do mundo administrado, carrega em seu seio sua própria negação. Aquele mesmo gesto que insiste em abreviar as distâncias – o “você” imediato, o abraço, o tapinha nas costas – é também o que pode, num piscar de olhos, se transmutar em sua violência oposta. A intimidade forçada não suprime a hierarquia, apenas a mascara, tornando-a mais insidiosa. O patrão que trata o empregado como “amigo” espera, em troca, uma lealdade absoluta que nega a própria possibilidade do conflito e, portanto, da emancipação. A cordialidade, neste sentido, é a forma social da reconciliação fraudulenta. Ela proíbe, por antecipação, a aspereza da honestidade intelectual, exigindo que todos dancem a mesma dança morna do “jeitinho”.


A vida se organiza sob o signo da improvisação, elevada à categoria de virtude nacional. O “se vira”, no entanto, é o outro nome da precariedade. O sujeito que se gaba de resolver tudo não percebe que está apenas remendando, com fios podres, as falhas de um sistema que o despreza. A genialidade prática, celebrada no malandro, é na verdade a capitulação do pensamento à pura sobrevivência. O intelecto, que deveria servir para criticar a totalidade, é rebaixado à astúcia de burlar suas regras mais imediatas – sem nunca questionar a validade do jogo. Pensar dá trabalho, e o trabalho já é tão pesado... Prefere-se a sagacidade, que é o pensamento cooptado pela lógica da dominação.


A natureza, aqui tão exuberante e violenta, serve de álibi para a barbárie social. A brutalidade da mata, o calor que convida à indolência, são invocados para justificar o atraso, como se a história humana não fosse justamente a luta contra a imposição cega da natureza. A “alegria” do carnaval, transformada em mercadoria de exportação, é a tristeza invertida. Sua euforia obrigatória, coreografada e transmitida ao mundo, esconde o luto pelo que poderia ter sido e não foi. A batucaria ensurdecedora não é expressão da liberdade, mas o ruído que impede o som da reflexão. No reino da felicidade espetacular, a melancolia torna-se um ato de resistência.


E o que dizer da violência que não é mais um evento, mas a textura do cotidiano? Ela já não assusta, apenas entorpece. A cada notícia de um assassinato banal, de um corpo caído na vala, a consciência se recolhe, um pouco mais endurecida, para não sucumbir. A vida na periferia do capitalismo é uma lição diária de que o humano é um luxo. A lei, quando existe, não vem para proteger o cidadão, mas para confirmar sua nudez diante do poder. A polícia que deveria servir à sociedade é a mesma que a mantém sob o terror, lembrando-a, a cada ação, de que a ordem vigente é a da selva, apenas com uniformes.


O brasileiro, esse especialista em esperar o futuro – o “país do futuro” –, aprendeu a habitar um presente perpétuo e dilacerado. Sua paciência, louvada como resignação cristã, é o sintoma de uma impotência historicamente fabricada. A esperança, aqui, tornou-se uma forma de desespero. Pois só se espera aquilo de que efetivamente se carece. E a tarefa do pensamento, neste barco à deriva entre a promessa e a ruína, talvez não seja a de cantar canções de ninar sobre a cordialidade, mas a de aprender, finalmente, o gosto amargo da verdade. A de que não há redenção na ginga, mas apenas na lucidez obstinada que, diante do abismo, se recusa a sorrir.


 
 
 
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