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Da Escravidão à Lógica do Condomínio

  • Foto do escritor: Ana Celeste Alves Casulo
    Ana Celeste Alves Casulo
  • há 3 dias
  • 3 min de leitura

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Dizer que a passividade política do povo brasileiro é apenas um estigma é insuficiente. Ela funciona, historicamente, como um traço, no sentido forte que Florestan Fernandes dá ao termo: uma disposição psíquica e social moldada por instituições que, durante séculos, reprimiram a autonomia, castigaram a rebeldia e recompensaram a submissão. O mesmo ocorre com aquilo que se pode chamar de covardia moral — a tendência de evitar o confronto com a injustiça, de recuar diante do conflito e de preservar privilégios mesmo às custas da dignidade alheia.

Esses traços não nascem do “temperamento brasileiro”, mas da forma como o Brasil foi construído: através da escravidão e de regimes autoritários. A escravidão, como lembra Florestan, não apenas organizou a economia, mas estruturou a sensibilidade coletiva. Criou uma sociedade onde o sujeito popular era punido por falar, desejar, se insurgir. O escravizado viveu séculos sob a punição do gesto, sob a pedagogia do terror. Os dominantes, por sua vez, aprenderam a evitar qualquer risco de igualdade — daí um tipo de covardia moral das elites, incapazes de enfrentar a própria responsabilidade histórica.

Quando veio a abolição, ela não destruiu essa lógica: apenas a recobriu com novos nomes. As ditaduras — do Estado Novo à militar — reforçaram a mesma matriz: o povo incapaz, o Estado tutor, a política como privilégio dos “superiores”. Criou-se, assim, um país onde a coragem moral foi sistematicamente desencorajada, e a passividade, sistematicamente ensinada.

É nesse ponto que entra a lógica do condomínio. Como mostra Christian Dunker, o condomínio é o novo nome da velha casa-grande. Nele, a cidadania é fragmentada, a alteridade é vivida como ameaça e o pobre — herdeiro histórico do escravizado — aparece como intruso, bandido, perturbação. O condomínio cristaliza um traço já existente: a recusa de enfrentar o conflito estrutural brasileiro. Em vez de encarar a injustiça, constroem-se muros. Em vez de redistribuição, vigilância. Em vez de convivência, expulsão.

Aí se revela a covardia moral: não é medo físico, mas a recusa ética de reconhecer o outro como igual. É o horror ao pobre, ao periférico, ao negro, ao favelado — algo que Florestan descrevia como autodefesa oligárquica, e Dunker como segregação subjetiva. No Brasil, a elite e grande parte das camadas médias preferem recuar para dentro de seus enclaves do que enfrentar as consequências políticas da igualdade.

O povo, por sua vez, habituado por séculos de violência estatal, aprende que participar é perigoso; que reivindicar é arriscado; que se expor é ameaçar a própria sobrevivência. A passividade, então, não é falta de caráter, mas caráter moldado pela dominação.

Assim, passividade e covardia moral não são insultos, mas categorias históricas. São traços coletivos produzidos pela fusão de três regimes de formação subjetiva:

a escravidão, que ensinou ao povo a autodefesa pela submissão e às elites a covardia mascarada de superioridade;

as ditaduras, que reprimiram o exercício da autonomia e naturalizaram o medo político;

o condomínio, que privatiza o espaço público, criminaliza o pobre e converte o ódio de classe em política cotidiana.

O resultado é um país que teme o conflito, que desconfia da participação e que transforma desigualdade em normalidade. Se quisermos romper com esses traços, como diria Florestan, será preciso um ato de coragem democrática que o Brasil historicamente não realizou: pôr fim à autocracia burguesa e assumir, enfim, o povo como sujeito.


 
 
 
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