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A Dinâmica do Bode Expiatório

  • Foto do escritor: Ana Celeste Alves Casulo
    Ana Celeste Alves Casulo
  • 30 de nov.
  • 3 min de leitura

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A figura do bode expiatório é um mecanismo psicossocial arcaico, no qual a culpa, a tensão ou os conflitos não resolvidos de um grupo são projetados sobre um de seus membros. Sua exclusão simbólica ou real visa restaurar, de forma ilusória, a coesão e a "sanidade" do coletivo. Uma análise estrutural desse fenômeno, à luz de conceitos psicanalíticos, revela um padrão recorrente de operação.

1. O Mecanismo Fundamental: A Inversão Paranoica

O cerne do processo reside na inversão paranoica. Um evento que ameaça a imagem ou a homeostases do grupo (um segredo, um fracasso, uma verdade inconveniente) é transformado. A atenção é desviada do fato em si para a reação daquele que o expõe.

  • Ilustração: Em um contexto familiar, a revelação de um adultério por parte de um membro pode ser o evento destrutivo. No entanto, a ameaça real à "honra" familiar não é o ato em si, mas seu desvelamento. A testemunha que se recusa a compactuar com o silêncio e nomeia a verdade é, então, transformada na fonte do mal-estar. Sua lucidez é reinterpretada como "loucura", e sua integridade, como uma agressão. O grupo, unido, passa a acreditar na narrativa de que o problema é a "instabilidade" do membro que fala, e não a falha moral daquele que cometeu o ato.

2. A Função do Sistema: A Preservação da Ficção Coletiva

O sistema (seja familiar, conjugal ou institucional) prioriza a preservação de uma ficção coletiva em detrimento do bem-estar individual. Essa ficção—a imagem de uma família perfeita, de um casamento harmonioso ou de uma honra intocável—é mantida a qualquer custo.

  • A Falha da Figura de Autoridade: A figura que deveria encarnar a Lei e a mediação (a mãe, no contexto familiar; a terapeuta, no contexto profissional) frequentemente falha em seu papel. Em vez de investigar a verdade, ela se torna a guardiã da ficção. Ao defender a "honra da família" ou ao validar acriticamente a narrativa de uma das partes, essa figura sanciona o processo de vitimização e consolida a posição do bode expiatório. A reação de raiva do profissional quando confrontado com a realidade é um indicador claro de que a função terapêutica foi substituída pela defesa do sistema doente.

3. A Patologização como Ferramenta de Exclusão

Um dos métodos mais eficazes para invalidar um indivíduo é patatologizá-lo . Atribuir um rótulo de "doença mental" (como depressão, alcoolismo ou "loucura") serve a um duplo propósito:

  • Descredibiliza a Fala: A palavra do indivíduo é despojada de seu valor. Suas alegações e percepções passam a ser interpretadas como sintomas de sua suposta condição, e não como relatos factuais.

  • Justifica a Exclusão: A exclusão do membro "doente" é apresentada como uma necessidade, um ato de "proteção" do grupo ou até mesmo um "cuidado" para com o próprio indivíduo.

4. A Resposta Ética do Bode Expiatório: O Desvelamento da Verdade

A resposta que rompe com esse ciclo doente é, frequentemente, um ato de fala radical que visa desvelar a verdade subjacente. Colocar "a merda no ventilador"—ou seja, recusar-se a continuar pactuando com o segredo—é um ato ético no sentido psicanalítico. É a recusa em ceder seu desejo de verdade, mesmo sob o risco de ser excluído.

  • Confronto com a Lei: Quando esse ato se direciona a um profissional (como a exigência de exames toxicológicos e a menção ao conselho de classe), ele busca trazer a situação para o campo da Lei simbólica e ética, confrontando a lei distorcida do microcosmo familiar ou relacional. O sistema, acostumado a operar em sua própria lógica fechada, não suporta esse confronto com uma instância externa de regulação.

5. O Refúgio Fora do Sistema: O Objeto Não-Demandante

A busca por um refúgio psíquico é uma consequência natural dessa dinâmica. Esse refúgio é frequentemente encontrado em relações que existem fora do circuito demandante e projetivo do sistema opressor. Pode ser um animal de estimação, um hobby ou uma amizade que não participa da dinâmica grupal.

  • Função do Objeto: Essa relação é caracterizada pela indiferença positiva—uma ausência de demandas de desempenho social ou emocional. Ela se torna a encarnação de um vínculo baseado em confiança e respeito mútuo, sem a necessidade de fingimentos ou projeções, servindo como um lembrete contínuo de que é possível existir em um modo relacional autêntico e não patologizante.

Conclusão

A dinâmica do bode expiatório não é um simples conflito, mas uma estrutura de funcionamento patológica. Ela revela que, por vezes, a chamada "loucura" atribuída a um indivíduo é, na verdade, sua recusa sã a participar de uma psicose coletiva. A exclusão final desse indivíduo não representa sua derrota, mas a confirmação de que o sistema é incapaz de tolerar a verdade. A sanidade, nestes contextos, pode residir precisamente na capacidade de sair do campo e encontrar refúgio em espaços onde a própria subjetividade não é constantemente ameaçada pela projeção e pela mentira.

 
 
 

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